Sabado de sol. Atrasados, corri pra lavar a louça acumulada. Um dos 50 copos na pia estava rachado e eu não vi. Peguei o copo e passei a esponja com força. Ele quebrou na minha mão e me cortou. Olhei pro corte e vi que a coisa tinha sido feia. Gritei pelo nome do cheri mil vezes até ele aparecer, assustado. Mostrei minha mão e ele fez uma cara feia. Ainda fez o tipico uh-la-la-la-la-la-la.... Quanto mais ''las' na boca de um francês, mais grave é a situação, saibam disso. E eu disse "Ei, não fala assim que você me assusta!" e ele tentou disfarçar. Depois respondeu "acho que precisamos ir ao médico". Foi quando eu olhei pro chão da sala e vi que estava cheio de sangue pingado da minha mão. Não sentia dor nenhuma. Soube ali que nosso sabado tinha acabado.
Minha sorte é que eu estava pronta pra sair de casa. Vestida e calçada. Se eu estivesse de pijama, acho que teria saido na rua de pijama mesmo. Enrolei a mão numa toalha e fui na farmacia pedir uma indicação enquanto cheri desligava o fogão, pegava as bolsas e fazia o que tinha que ser feito. Furei fila na farmacia e fui logo dizendo que eu tinha me cortado e não sabia se precisava ir pro hospital. Um cara super simpatico e atencioso me levou pra tras da loja e pediu pra eu mostrar o corte pra ele. Fui desembrulhando a mão e vi que a toalha ja estava cheia de sangue. "uh-la-la-la-la-la-la....", ele disse. Perguntou se eu queria sentar, respondi que não. Ele desinfectou o corte, mas disse que não ia mexer muito porque não sabia se ainda tinha vidro la dentro e tal. Mas falou pra eu ir sim pra emergência e me indicou um hospital em Saint-Mandé, fora de Paris, que era mais vazio que os outros. Estavamos caminhando para tras do balcão, quando de repente senti que meu corpo estava vazio de sangue e que eu estava prestes a cair. Nunca tinha sentido isso antes! Mas tentei me manter forte, pensava que poxa, era so um corte, por que estava me sentindo tão mal? Cheri chegou na farmacia e eu nem o vi direito. Perguntei pro cara se eu podia sentar dizendo que não tava me sentindo bem. Sentei. Ele disse que era normal, era o choque. Lembrei que não tinha comido nada o dia todo e de repente uma fome monstra tomou conta de mim. Fiquei com tanta fome que não sabia como eu poderia reunir forçar pra chegar em casa e comer. O cara da farmacia dizia que a gente poderia pegar um taxi pro hospital ou então o metrô. So a visão de entrar num metrô naquele momento me fez piorar, era a ultima coisa no mundo que eu era capaz de fazer. Dai os dois ficaram discutingo logistica e eu fui me recompondo. Ufa, ja estava bem melhor.
Cheri subiu de novo no apartamento pra pegar umas coisas e ver exatamente onde ficava o tal do hospital. Como eu estava melhor, disse que não valia a pena pegar um taxi, o melhor seria ir de ônibus. Porque eu posso estar mal, mas continuo pão dura. E ja estava me sentindo bem, nem fome eu tinha mais. No ônibus encontramos um conhecido que foi logo me estendendo a mão pra dizer bonjour e eu tive que dizer "xi, não vai dar, cortei a mão e estou indo pro hospital". E todo o ônibus olhou pra mim. Na verdade o hospital era bem pertinho de casa, mas chato de chegar até ele. Tivemos que pegar o metrô também, mas apenas por uma estação, so pra não precisar andar mesmo. Eu ja estava bem tranquila, parecia que estava indo dar um passeio no parque. A essa altura o corte ja doia.
Chegamos no hospital, fui levada diretamente pra uma sala e atendida por duas enfermeiras divertidas que disseram "ah, jolie!" quando viram meu corte. Uma delas perguntou se eu estava em dia com a vacina de tétano, eu (que odeio agulhas) disse que tinha quase certeza que sim, mas como eu minto mal, ela disse que ia fazer o teste mesmo assim. E o teste, minha gente, era um furo no dedo. Com tanto sangue espalhado por ali, por que não aproveitar, né? Mas nem deu tempo de reclamar, ela ja foi logo pegando meu dedo e furando, e pra minha surpresa, nem senti!
Colocaram minha mão dentro de uma tijela com iodo e disseram que eu tinha que ficar assim por pelo menos 15 minutos, mesmo que ardesse. E olha, ardeu. O problema é que não foram 15 minutos, mas quase 2h! Até tirei um cochilo. Dai chegou o médico, que certamente era mais novo que eu. Ele parecia meio perdidão, mas era muito atencioso. Explicou que a região do corte concentrava muitos nervos e tendões importantes e que era preciso ter certeza de que nenhum deles tinha sido atingido. Dai ele mexeu de um lado, mexeu do outro, fez testes de movimentos e quando acabou eu perguntei: "E ai? Pegou algum nervo importante?" e ele respondeu "Acho que não. Perai que vou chamar meu colega". Aparece um menino que não devia ter mais de 22 anos, mas todo seguro de si. Foi logo pegando uma pinça e avisando que ia doer um pouquinho. PQP. Chegaram a conclusão que tava tudo ok, era so dar um pontinho aqui e outro ali e ia ficar tudo certo.
Quando fiquei sozinha com meu médico novamente perguntei "Então, você é estudante?", ele respondeu "interno", depois riu e disse, "sim, estudante". Dai conversamos sobre como a faculdade de medicina é dificil, sobre a escolha da especialidade e percebi que se fosse outra ocasião, a gente poderia sair todo mundo pra tomar uma cerveja - eu, ele, as enfermeiras e todos os outros estudantes que passaram pra dar uma olhadinha no meu corte (e que, tenho a nitida impressão, ficaram um tantinho decepcionados por meus nervinhos estarem intactos). Mas não, ele estava apenas costurando meu dedo e eu tinha que chama-lo de vous. Me senti num episodio de Gray's Anatomies.
O legal é que ele me explicava passo-a-passo o que ia fazer. Disse que apesar do meu corte ser grande, ele so precisaria dar dois pontos porque foi fundo e meio na horizontal. Negociamos se teria anestesia ou não e decidimos que não teria. Dai ele narrava tudo o que estava fazendo (ja que eu não estava olhando): "Agora estou procurando o melhor lugar pra pôr o ponto. Voilà. Agora vou furar, atenção! Hooooop-la! Mais uma vez, mais uma vez, hop-la! Pronto, a metade ja foi, viu como não doi tanto assim?", um fofo. Prefiro um estudante simpatico do que um velho experiente que nem liga pra mim. Depois ele me disse: você é bem menos sensivel do que pensa. Eu precisava ouvir isso.
A enfermeira voltou com a tal da injeção contra o tétano. Eu disse pra ela que talvez não fosse necessario, que tinha sido vidro e não metal e blablabla. Ela respondeu "tétano mata, sabia?". Um argumento bastante razoavel, cedi. Dai ela perguntou: "Você pretende ter filhos? Isso não é nada perto de um parto". Estou convencida a não ter filhos. Ela foi pegando meu braço e eu falei: "Mas não é melhor dar no mesmo braço dos pontos? Assim eu fico apenas com um braço invalido", mas ela respondeu "Não se preocupe, essa vacina não doi depois". Resultado - hoje estou com dois braços invalidos. Thanks, nurse.
Saimos de la sem pagar um tostão. Amo a França. Passei 3h no hospital e achei muito, depois descobri que nos hospitais de Paris às vezes temos que esperar até 8, 9h pra sermos atendidos. Dos males, o melhor. Descobri que levar pontos não é assim tão assustador e que eu sou bem mais forte do que eu pensava. Juro que da proxima vez não vou fazer cara feia pra nenhuma agulha. Cheri tem me ajudado a fazer coisas simples como pôr comida no prato ou abrir uma lata. Não pude resistir a piada quando estava a caminho do banheiro: "quando eu terminar, te chamo, ta?".
Daqui a dez dias tiro os pontos.