Quando decidi morar na França fiquei triste por deixar meus amigos e minha familia, é claro. Porém, fiquei duas vezes feliz: a primeira por chegar em um lugar novo e a segunda por sair do Rio. Acho que eu devo ser uma das poucas cariocas que diz não gostar de morar no Rio. Poxa, eu vivia com medo! Tinha medo de sair à noite e voltar de madrugada, tinha medo quando cruzava uma viatura de policia na linha vermelha, tinha medo de ir da minha casa na Tijuca para a casa da minha avo em Olaria, passando por varias favelas e ouvindo tiros pelo caminho. Acontece que o meu Rio não é Ipanema, Leblon, Gavea. O meu Rio é Olaria, Ramos, Penha, Complexo do Alemão e somente aos 17 anos, Tijuca.
E eu não tinha medo so por mim. Quando minha mãe ia sozinha pra casa da minha avo eu morria de preocupação até ela ligar pra dizer que tinha chegado. Eu também morria de medo pela minha familia por parte de mãe que mora numa rua de acesso ao morro do alemão e pela familia do meu pai que mora na Penha, cercada de favelas. Quando eu fui embora continuei preocupada, claro, mas era menos pontual, porque eu não sabia quando minha mãe estava indo pra minha avo ou quando o bicho estava pegando nos morros. Mas às vezes eu ligava pro meu pai e ouvia os tiros no telefone.
O mais impressionante é a normalidade com que a gente encara a violência. Isso ficou ainda mais claro depois que vim morar fora do pais. Para mim, era absolutamente normal ouvir barulho de tiro e rajadas de metralhadoras. O cheri me zoava cada vez que eu ouvia um barulho e dizia "Xiiii, é tiro". Uma vez, logo no inicio, quase me joguei no chão achando que tinha tiro bem perto da gente. Imaginem o ridiculo da cena! Mas para mim ja era reflexo de sobrevivência! No começo desconfiava de crianças negras que detectava com o canto do olho e quando olhava pra elas me sentia a pior das pessoas: via crianças como qualquer outra, de mochila indo pra escola. Mas é isso que nos, cariocas, fazemos: desconfiamos de crianças negras que cruzamos na rua! E ainda as chamamos de trombadinhas. Eh dificil admitir, é muito triste, mas é verdade.
Cheguei ao ponto de acreditar que o Rio era um caso perdido. Não tem mais solução, pensava. E todo mundo à minha volta também pensava o mesmo. Imaginem a minha surpresa e felicidade ao conversar com cariocas que diziam que a violência no Rio estava melhorando com a nova politica implantada pelo governador Sérgio Cabral, com suas UPPs. Minha mãe disse que o caminho para a casa da minha avo estava bem tranquilo, meus amigos do Grajau disseram que as favelas em voltas estavam numa paz que nunca tinham visto antes, mas uma coisa me preocupava: todo mundo dizia que os bandidos estavam sendo expulsos de suas comunidades e se concentrando no gigante Complexo do Alemão e o dia que a policia invadisse o Alemão a coisa ia ficar feia.
Achei normal a reação dos bandidos para tentar pôr a população em pânico para que ela fizesse pressão para acabar com essa politica que os esta prejudicando. Mas a população não é boba e pela primeira vez esta totalmente do lado da policia. Acho que a grande maioria dos cariocas é favor de ir até o fim, como se essa fosse uma batalha final de uma guerra que durou décadas. E eu pensei, poxa minha familia ja vive sob risco constante, então pelo menos dessa vez é por um bom motivo e quem sabe, pela ultima vez. Como estou longe não sei exatamente qual o clima do Rio nesse momento, mas meu amigo Flavio me deu uma ideia do otimismo geral:
"Eu realmente acho que alcançamos um divisor de águas. O clima na cidade é estranho demais. As pessoas estão com medo, mas o que se destaca mais é o engajamento da população, a coragem. Todos estão do lado da polícia, e finalmente conseguimos ver a polícia do nosso lado. Lá na Penha, as pessoas estavam dando água para os PMs!!! Onde já se viu isso no RJ!!! É a hora, e todos já sacaram isso. A sensação é de que não dá pra voltar atrás, agora é só ir pra frente. Mudou alguma coisa na cidade, não sei se pra melhor ou pior, mas alguma coisa mudou claramente.
Amanda, o Brasil é o país do futuro? A Tânia esteve aqui e disse que é o que mais se fala por aí. E eu acredito nisso, acho que em 4-5 anos essa cidade vai se transformar absurdamente. Limpeza, segurança, educação das pessoas, trânsito, Lagoa Rodrigo de Feitas, Baía de Guanabara... isso tudo vai mudar, seja por bem ou por mal. Seja profundamente ou só uma maquiagem para o mundo ver, mas essa cidade já começou o seu processo de mudança.
Nesses últimos dias de "atentados terroristas" e guerra declarada, Amanda, você tem que ver as declarações das pessoas nas ruas, ninguém se prende muito ao momento, todos falam da esperança no futuro. As pessoas estão muito conscientes de que precisam pagar por 20 e tantos anos de descaso com a segurança pública. Então estão falando assim mesmo: Temos que passar por isso, para isso acabar e chegarmos em um lugar melhor. O clima é muito diferente (acho que dá para notar pelo tom desse texto que escrevi, né?)".
Achei muito emocionante o que ele escreveu, mas não posso simplesmente gritar "agora é a hora, a policia tem que acabar com a festa dos bandidos", quando minha familia é refém dessa disputa. Eles estão la, presos dentro da casa que julgam mais segura, com medo. Minha priminha de um ano esta la. Quem foi trabalhar não conseguiu voltar e primos foram dormir na casa de amigos. Com certeza ter minha familia la no meio da guerra me faz ter uma postura diferente do que eu teria se eles não tivessem la. Provavelmente eu nem estaria tão interessada no assunto, estaria acompanhando meio de longe, entusiasmada com as mudanças que estão acontecendo e torcendo pra o exército invadir logo pra devolver a paz no Rio. Mas sera que para chegar à paz temos que passar pela guerra? Adorei a iniciativa da ONG Rio de Paz que propõe uma negociação de rendição dos bandidos, para que o alemão não se transforme em um campo de guerra. O pior é ler na internet mensagens de odio dizendo que não tem esse negocio de rendição, tem que invadir e matar todo mundo, jogar uma bomba de preferência!
Porque eu sei que é muito improvavel que aconteça algum dano fisico na minha familia se eles continuarem se escondendo, mas so esse terror, esse medo constante, ja é uma violência tremenda. Imagina dormir com medo de uma bala perdida invadir sua casa, imagina temer que bandidos te obriguem a escondê-los no meio da madrugada? Imagina ouvir barulho de tiros sem cessar? Helicopteros voando no seu telhado?
Estar longe não ajuda. Fico grudada nas informações, querendo saber de todos os detalhes. Quero muito que tudo isso termine de uma vez. Eu estou na França, mas o meu coração, mais do que nunca, esta no Rio.