quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Amor materno, esse inominavel

Deixo um pouco de lado as eleições e mudo de assunto, apesar da campanha estar pegando fogo e eu ter milhões de coisas passando pela mente. Mas dessa vez escolho apenas ler e ouvir o que os outros têm a dizer. Falem nos blogs, no twitter, no facebook que estou ouvindo. Mas vou deixar o discurso para quem esta mais preparado que eu, porque agora a coisa ficou feia.

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Foi a Rita que lançou o debate no post dela sobre a Madame Bovary e a questão ficou martelando aqui na minha cabeça. A Rita achou um absurdo como a madame deixou sua filha em segundo plano quando decidiu fugir com o amante. A criança foi tratada como um detalhe chatinho que deveria ser solucionado, e não como um dos personagens fundamentais na vida daquela mãe. Dai a Iara rebateu dizendo que ela tinha que levar em consideração o contexto historico, pois naqueles tempos as relações entre mães, pais e filhos na França eram diferentes. E o assunto coincidiu em aparecer (ou talvez eu tenha prestado atenção nele so por causa da conversa das meninas) no meio de duas leituras que fiz essa semana. Não eram o assunto principal, aparecerem apenas como complemento da historia.

A primeira saiu do livro Historia do Brasil, de Boris Fausto, numa parte em que fala sobre um abolicionista mestiço, Luis Gama. Seu pai era um português rico e sua mãe uma negra africana livre. "Gama foi vendido ilegalmente como escravo pelo pai empobrecido, sendo enviado para o Rio e depois para Santos. Junto com outros cem escravos, descalço e faminto, subiu a Serra do Mar. Fugiu da casa de seu senhor, tornou-se soldado e, mais tarde, poeta, advogado e jornalista em São Paulo". Prestem atenção na primeira frase - o cara foi vendido como escravo pelo proprio pai!

A segunda veio de um livro da estante magica que estava folheando. Ele conta a historia dos filhos e netos de Clovis, um rei francês do ano de 481. Naquela época, todos os filhos homens de um rei, eram automaticamente reis também. E por causa disso os reinos iam diminuindo. E para assumir tal cargo vitalicio, era obrigatorio ter os cabelos compridos, para se diferenciar dos plebeus. Clovis teve quatro filhos e quando um deles morreu, deixou por sua vez, três herdeiros. Os tios (os outros filhos de Clovis) não queriam dividir seus reinos, então sequestraram os sobrinhos e mandaram uma carta para a mãe dos meninos: "O que você prefere, que a gente corte o cabelo deles ou que matemos os três?". A mãe, do alto de seu instinto materno respondeu que se eles não pudessem reinar, era preferivel que morressem.

E fui lembrando de diversos outros casos de "desapego familiar" em épocas e contextos diferentes, como os indios brasileiros, que vendiam a propria mãe ou outros membros da familia como escravos para os portugueses, e assim por diante. Exemplos desse tipo estão documentados em varios registros do passado, seja ele distante ou relativamente recente. A biblia é uma fonte infinita de exemplos, como quando Abraão ia matar o proprio filho porque deus pediu; ou Lo, que ofereceu suas filhas ao estupro em Sodoma, porque o sexo homosexual consentido era pecado.

Na França de antigamente, as familias nobres mandavam suas crianças para serem cuidadas por babas no campo, onde ficavam até crescerem sem ter contato com sua familia. E minha professora de francês ainda acrescentou que muitas vezes as crianças morriam e as babas, para não perderem o salario, as substituiam por outras, que acabavam assumindo o trono e entrando de fininho na familia real. E ninguém percebia a diferença. Cuidar de crianças naquela época era um trabalho indigno, mesmo se as tais crianças fossem seus proprios filhos.

Eh claro que não podemos afirmar que essas historias não eram regra absoluta, mas esta provado que elas estavam longe de ser exceções. E eu me pergunto o por quê desse desapego, menosprezo até, com os familiares e sobretudo com os filhos, ja que dizem que o amor por um filho é maior do que o mundo. Elas amavam menos os filhos antigamente? Claro que não, a cultura de antes que era diferente.

Isso tudo so me da mais certeza de que o tal do instinto materno é uma construção da nossa sociedade. Se antigamente era aceitavel vender o filho como escravo ou sacrifica-lo em nome de um bem maior, não existia o tal do instinto materno ou paterno para colocar a vida e o bem-estar da cria em primeiro lugar, custe o que custar. Hoje consideramos tais praticas como barbaridades e matar um filho é o pior crime que alguém pode cometer. Essa mudança mostra apenas como nossa sociedade evoluiu. Hoje o bem-estar e o desenvolvimento dos filhos é uma prioridade na vida das pessoas. Nos preocupamos cada vez mais em educar os novos habitantes do planeta, nos preocupamos com seu futuro, nos preocupamos em dar as melhores condições para que ele tenha uma vida saudavel, consciente e cidadã. E os amamos profundamente. Isso não é instinto materno, é a evolução da nossa sociedade.

Pensei também que uma outra explicação seria a de que antigamente as crianças eram tão frageis e morriam tão facilmente que as pessoas tentavam não se apegar demais para não sofrer, mas isso não teria nada de instintivo, seria racional, pessimista e tremendamente calculista. 

Ora, chamar de instinto materno o amor consciente, construido e planejado que sentimos pelos nossos filhos é tirar o mérito da nossa humanidade. Talvez as pessoas falam em instinto pra tentar exprimir um amor que ultrapassa o entendimento, um amor tão incondicional, inexplicavel e inominavel que creditamos ingenuamente ao instinto. Mas é so olhar pra nossa historia que essa teoria vai por agua a baixo. Não é instinto, é apenas muito, muito amor. Amor não tem nome mesmo, e a gente não precisa procurar um.

8 comentários:

Iara disse...

Oi, Amanda, legal que você falou sobre isso. Legal também pra eu poder pensar em outra coisa que não seja a campanha eleitoral. Pois é, eu acabei não falando lá na Rita, que não quis parecer inconveniente (poxa, ela é uma mãe tão apaixonada e fofa!) mas a gente sabe que os nossos relacionamentos também são construções culturais. Se hoje a norma é todo mundo amar muito os filhos, por outro lado as maneiras de amar mudam. Por que para uma família é normal que um filho passe 1 ano fora fazendo intercâmbio aos 16 anos e pra outra é simplesmente inaceitável? Por que há mães que encaram numa boa a guarda compartilhada quando são separadas, e outras não? Vou mais longe: por que algumas mães separadas aceitam numa boa que seus filhos sejam criados pelos ex-companheiros quando isso parece melhor pra todo mundo por uma combinação de fatores (estou falando de gente que ama os filhos, não que os abandona, tá?), e pra outras isso é inaceitável? Quer dizer, não há uma norma. A gente vai construindo o que é socialmente aceitável e o que não é. E dentro disso se constroem nossos sentimentos, eu acredito. Ufa, ficou longo...

Rita disse...

Agora imagine eu ver esse post ontem e não ter tempo de comentar!! Mas eu fui ao cinema com o pai dos meus filhos, dá licença, hahahaha!

Meninas (pra você, Amanda, e pra Iara também), acho um barato a Iara dizer que não quis "parecer inconveniente", óóó, que bonitinha! Ora, Iara, pode soltar o verbo, ô mulher!

Amanda, concordo absolutamente com o argumento central de seu post. Todas as nossas relações socias e afetivas são construídas socialmente. E esse é o grande poder do óbvio, como diz nosso Tio Foucault. Por parecer óbvio, natural, é que as coisas nos dominam e aprisionam tanto. E, ao mesmo tempo que acredito usufruir de uma construção social altamente benéfica (a convivência harmoniosa com marido e filhos, mãe, etc), lamento a segregação que essas mesmas construções desencadeiam. Porque é justamente por achar natural o modelo padrão de família que as pessoas saem por aí torcendo o nariz para os homossexuais ou para as mulheres que não querem ter filhos, olha só!

O meu comentário sobre a filha da Ema foi absolutamente anacrônico e descabido. Julguei a coitada como se ela fosse uma Rita ou uma Amanda do século XXI e não a Sra. Bovary e nada mais, nos moldes das senhoras de sua época. Mesmo com o contexto social em mente, minha observação lá foi bem naive mesmo.

Mas no final das contas foi ótimo, porque isso gerou esse ótimo texto seu. Vou fazer um update mais tarde no post e pôr um link pra cá, porque vale a pena.

Beijos, Amanda!

Rita

Mari disse...

Oi Amanda! Concordo com vc e com os franceses (livros e revistas especializadas por aqui defendem o mesmo ponto de vista): o instinto materno não existe. Instinto é o que faz o feto ficar chupando o dedão no utero. O que a mãe sente pelo bebê quando ele nasce faz parte da esfera psicologica da coisa e como tal, esta sujeito a todo tipo de influência socio-cultural... Quando eu ouvi uma sage-femme dizer isso num curso pra gravidas como algo meio obvio, fiquei meio perdida. No Brasil não se costuma questionar esse ponto. Mas depois tudo foi me parecendo realmente obvio... principalmente a parte de que o amor materno é também uma construção, para muitas mulheres. E realmente a minha experiência foi bem assim. O amor materno não chegou como uma bigorna que cai na cabeça, mas como uma serie de ondas que vão crescendo e tomando conta da orla...
Se o amor materno fosse essa bigorna certeira, intintiva e portanto ditada pela natureza, genética etc, nenhuma mulher conseguiria dar um filho para adoção, por exemplo. Mas muitas dão e não se arrependem. O que prova que o amor materno não é instintivo coisissima nenhuma...
Acho que se todas as mulheres gravidas pudessem repensar essa questão desse ponto de vista, muitos casos de depressão pos-parto poderiam ser evitados. Mas enfim, esse assunto abre discussões infinitas... tem blog que é so sobre isso...
bjus!!

Aline Mariane disse...

já diria Lacan... e quer coisa mais francesa que isso?! (Cadê um psicólogo pra explicar melhor?? Margareth??!!)

Luciana Nepomuceno disse...

Olha, nem posso dimensionar o quanto gostei do seu texto. Bem escrito, articulado, preciso e claro. Direto ao ponto e evitando as análises superficiais. Tocou-me, além do cognitivo. Um beijo agradecido

mãe disse...

Antigamente acontecia sim, o sacrificio dos filhos por razões religiosas ou politicas, tal era o grau de fanatismo, já meio que patológico, dessas pessoas. Mas mesmo assim, José e Maria fugiram, protegendo assim seu filho dos bárbaros.
Seja instinto, seja psicológico, fato é que até entre os bichos esse amor materno (eu disse materno) existe e ele é irracional e incondicional sim.
Tavez muita mãe deixe seu filho para adoção justamente por existir esse amor.
Por isso uma mãe fica contente, com sua única filha morar em Paris, pelo simples fato de saber que é o que ela escolheu para ser feliz. E é.
Isso é o incondicional, inexplicavel e inonimavel amor materno!!!!
Não é para entender... é para sentir...
EU TE AMO, MINHA FILHA!

Amanda disse...

Fatima diz:

Oi Amanda. Desculpe estar mandando e-mail, mas não consigo postar comentários no seu blog porque não tenho conta no google.
Você diz: "Isso tudo so me da mais certeza de que o tal do instinto materno é uma construção da nossa sociedade"
Instinto é coisa de bichos. Minha cadela, por instinto, defende os filhotes, mas também os mata ou enterra ainda vivos.
Nós, humanos, manifestamos sentimentos.
Essa manifestação é que muda conforme seu contexto.
Quando eu era criança (tenho 38 anos) nem de longe as crianças tinham o status que tem hoje na família. Eu e outras crianças comíamos em mesas separadas dos adultos, para ficar só num exemplo. Eles amavam menos os filhos? Não creio. A manifestação desse apreço é que era diferente e adequada à cultura vigente.
Beijos
Fátima

Amanda disse...

Mãe, eu também te amo muito! Amor de filha tbm é inominavel!

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