sábado, 27 de novembro de 2010

Guerra no Rio

Quando decidi morar na França fiquei triste por deixar meus amigos e minha familia, é claro. Porém, fiquei duas vezes feliz: a primeira por chegar em um lugar novo e a segunda por sair do Rio. Acho que eu devo ser uma das poucas cariocas que diz não gostar de morar no Rio. Poxa, eu vivia com medo! Tinha medo de sair à noite e voltar de madrugada, tinha medo quando cruzava uma viatura de policia na linha vermelha, tinha medo de ir da minha casa na Tijuca para a casa da minha avo em Olaria, passando por varias favelas e ouvindo tiros pelo caminho. Acontece que o meu Rio não é Ipanema, Leblon, Gavea. O meu Rio é Olaria, Ramos, Penha, Complexo do Alemão e somente aos 17 anos, Tijuca.

E eu não tinha medo so por mim. Quando minha mãe ia sozinha pra casa da minha avo eu morria de preocupação até ela ligar pra dizer que tinha chegado. Eu também morria de medo pela minha familia por parte de mãe que mora numa rua de acesso ao morro do alemão e pela familia do meu pai que mora na Penha, cercada de favelas. Quando eu fui embora continuei preocupada, claro, mas era menos pontual, porque eu não sabia quando minha mãe estava indo pra minha avo ou quando o bicho estava pegando nos morros. Mas às vezes eu ligava pro meu pai e ouvia os tiros no telefone.

O mais impressionante é a normalidade com que a gente encara a violência. Isso ficou ainda mais claro depois que vim morar fora do pais. Para mim, era absolutamente normal ouvir barulho de tiro e rajadas de metralhadoras. O cheri me zoava cada vez que eu ouvia um barulho e dizia "Xiiii, é tiro". Uma vez, logo no inicio, quase me joguei no chão achando que tinha tiro bem perto da gente. Imaginem o ridiculo da cena! Mas para mim ja era reflexo de sobrevivência! No começo desconfiava de crianças negras que detectava com o canto do olho e quando olhava pra elas me sentia a pior das pessoas: via crianças como qualquer outra, de mochila indo pra escola. Mas é isso que nos, cariocas, fazemos: desconfiamos de crianças negras que cruzamos na rua! E ainda as chamamos de trombadinhas. Eh dificil admitir, é muito triste, mas é verdade.

Cheguei ao ponto de acreditar que o Rio era um caso perdido. Não tem mais solução, pensava. E todo mundo à minha volta também pensava o mesmo. Imaginem a minha surpresa e felicidade ao conversar com cariocas que diziam que a violência no Rio estava melhorando com a nova politica implantada pelo governador Sérgio Cabral, com suas UPPs. Minha mãe disse que o caminho para a casa da minha avo estava bem tranquilo, meus amigos do Grajau disseram que as favelas em voltas estavam numa paz que nunca tinham visto antes, mas uma coisa me preocupava: todo mundo dizia que os bandidos estavam sendo expulsos de suas comunidades e se concentrando no gigante Complexo do Alemão e o dia que a policia invadisse o Alemão a coisa ia ficar feia.

Achei normal a reação dos bandidos para tentar pôr a população em pânico para que ela fizesse pressão para acabar com essa politica que os esta prejudicando. Mas a população não é boba e pela primeira vez esta totalmente do lado da policia. Acho que a grande maioria dos cariocas é favor de ir até o fim, como se essa fosse uma batalha final de uma guerra que durou décadas. E eu pensei, poxa minha familia ja vive sob risco constante, então pelo menos dessa vez é por um bom motivo e quem sabe, pela ultima vez. Como estou longe não sei exatamente qual o clima do Rio nesse momento, mas meu amigo Flavio me deu uma ideia do otimismo geral:

"Eu realmente acho que alcançamos um divisor de águas. O clima na cidade é estranho demais. As pessoas estão com medo, mas o que se destaca mais é o engajamento da população, a coragem. Todos estão do lado da polícia, e finalmente conseguimos ver a polícia do nosso lado. Lá na Penha, as pessoas estavam dando água para os PMs!!! Onde já se viu isso no RJ!!! É a hora, e todos já sacaram isso. A sensação é de que não dá pra voltar atrás, agora é só ir pra frente. Mudou alguma coisa na cidade, não sei se pra melhor ou pior, mas alguma coisa mudou claramente.

Amanda, o Brasil é o país do futuro? A Tânia esteve aqui e disse que é o que mais se fala por aí. E eu acredito nisso, acho que em 4-5 anos essa cidade vai se transformar absurdamente. Limpeza, segurança, educação das pessoas, trânsito, Lagoa Rodrigo de Feitas, Baía de Guanabara... isso tudo vai mudar, seja por bem ou por mal. Seja profundamente ou só uma maquiagem para o mundo ver, mas essa cidade já começou o seu processo de mudança.

Nesses últimos dias de "atentados terroristas" e guerra declarada, Amanda, você tem que ver as declarações das pessoas nas ruas, ninguém se prende muito ao momento, todos falam da esperança no futuro. As pessoas estão muito conscientes de que precisam pagar por 20 e tantos anos de descaso com a segurança pública. Então estão falando assim mesmo: Temos que passar por isso, para isso acabar e chegarmos em um lugar melhor. O clima é muito diferente (acho que dá para notar pelo tom desse texto que escrevi, né?)".

Achei muito emocionante o que ele escreveu, mas não posso simplesmente gritar "agora é a hora, a policia tem que acabar com a festa dos bandidos", quando minha familia é refém dessa disputa. Eles estão la, presos dentro da casa que julgam mais segura, com medo. Minha priminha de um ano esta la. Quem foi trabalhar não conseguiu voltar e primos foram dormir na casa de amigos. Com certeza ter minha familia la no meio da guerra me faz ter uma postura diferente do que eu teria se eles não tivessem la. Provavelmente eu nem estaria tão interessada no assunto, estaria acompanhando meio de longe, entusiasmada com as mudanças que estão acontecendo e torcendo pra o exército invadir logo pra devolver a paz no Rio. Mas sera que para chegar à paz temos que passar pela guerra? Adorei a iniciativa da ONG Rio de Paz que propõe uma negociação de rendição dos bandidos, para que o alemão não se transforme em um campo de guerra. O pior é ler na internet mensagens de odio dizendo que não tem esse negocio de rendição, tem que invadir e matar todo mundo, jogar uma bomba de preferência!

Porque eu sei que é muito improvavel que aconteça algum dano fisico na minha familia se eles continuarem se escondendo, mas so esse terror, esse medo constante, ja é uma violência tremenda. Imagina dormir com medo de uma bala perdida invadir sua casa, imagina temer que bandidos te obriguem a escondê-los no meio da madrugada? Imagina ouvir barulho de tiros sem cessar? Helicopteros voando no seu telhado?

Estar longe não ajuda. Fico grudada nas informações, querendo saber de todos os detalhes. Quero muito que tudo isso termine de uma vez. Eu estou na França, mas o meu coração, mais do que nunca, esta no Rio.

7 comentários:

Yolanda Barroso disse...

é assustador ver o que está acontecendo, o que todo mundo sabia que iria acontecer depois das UPP's, mas eu acho mais assustador a visão das pessoas de "vamos matar todos os bandidos, eles merecem", como você falou.
São frutos de um passado e presente de condições desfávoraveis.
Torço para isso terminar também.

Beatriz disse...

Oi Amanda!
Sou uma carioca que agora está morando bem longe, nas montanhas de minas....mas, por incrível que pareça estou mais confiante do que nunca. Parece que pela primeira vez resolveram enfrentar de frente a bandidagem da minha cidade querida! Difícil mesmo vai ser acabar com a bandidagem dentro da própria polícia... Aí é que eu quero ver!
Estou aqui na paz e na torcida!
Beijinhos,
Bia
www.biaviagemambiental.blogspot.com

Luciana Nepomuceno disse...

Amanda,
eu tenho lido muito sobre a situação no Rio, tudo, tudo que encontro. Não sou carioca, nunca morei no Rio, mas meu coração está justamente voltado para as pessoas e seus cotidianos tão alterados por esta situação. Claro que é meu desejo, como de muitos, que a polícia consiga desestruturar as organizações criminosas. Mas meu desejo ainda maior é que consiga fazer isso com o mínimo de violência e exposição da população. Se queremos construir uma cultura voltada para a paz temos que ter cuidado com nosso próprio dizer e o discurso de "mata porque é bandido" não nos aproxima desse projeto.
Isso tudo pra dizer que fiquei completamente tocada por seu texto e que você e sua família estarão no meu pensamento. Além disso, parabéns pelo post, como sempre você apresenta situações complexas de forma compreensível e organizada sem esvaziar a complexidade. Bjs

Mariana disse...

Oi, Amanda

Assim como vc, meu Rio nunca foi o Rio-Zona-Sul-cartão-postal-pra-gringo de Leblon e Ipanema. Meu Rio sempre foi o subúrbio, a parte mais desconhecida dessa cidade: Cordovil, Brás de Pina, Bonsucesso e, agora, Jacarepaguá.

Como Jacarepaguá, apesar de ser tranquilo, é bem longe do Centro, trabalhei de casa na quinta e sexta-feira, simplesmente porque TODAS as minhas rotas para o trabalho registraram algum incidente do tipo queima de carro e ônibus, tiroteios e descoberta de explosivos. Sem dúvida, um grande transtorno para quem mora por aqui, mas não chega nem perto do sofrimento das pessoas que moram na Vila Cruzeiro, no Complexo do Alemão e nos subúrbios das cercanias que conhecemos muito bem.

Tenho muitos amigos em Bonsucesso, Penha e até uma que mora dentro do Alemão e todo mundo está com muito medo de ser alvejado por uma bala perdida. Eles reconhecem que mudou bastante a abordagem da polícia nos últimos anos mas, como vc bem disse, ser carioca pressupõe certos instintos de sobrevivência e uma grande desconfiança. (continua)

Mariana disse...

... Mas concordo com o Flavio, pela primeira vez a população, mesmo historicamente desconfiada, está do lado do governo e da polícia, como se essa grande operação significassse a última batalha de uma grande guerra contra o tráfico. Só que, pra mim, o buraco é mais embaixo.

Sou completamente a favor das UPPs, acho que a população das favelas e dos entornos vivia em uma situação constante de pânico e sob grande risco de morrer ou perder algum parente de modo "bobo" e que eles, como cidadãos cariocas, merecem que o governo lhes garanta segurança. Aconteceu isso aqui em Jacarepaguá, na Cidade de Deus, e melhorou demais.

Mas existem dois problemas na UPP: o primeiro é óbvio, não prenderem os bandidos e permitirem que eles migrem para outras comunidades para aterrorizar seus habitantes. O segundo é que só colocar a polícia pacificadora é MUITO POUCO para o Estado reparar os danos de décadas de total ausência nessas áreas mais pobres. Sabe quantas escolas públicas existem no Alemão? DUAS. E essa situação deplorável não se resolve apenas com a presença da polícia, o Estado tem que entrar também com educação, saúde e promovendo oportunidades para uma população esquecida. Só assim as coisas vão mudar. Mas pelo menos foi dado o primeiro passo.

Rita disse...

Amanda,

desde que vi seu comentário no twitter tenho pensado em sua família, assim como em parentes meus e amigos que moram lá.

Tenho visto pouco porque ando meio sem ver TV mesmo, mas li alguns textos e me parece ser bem visível que a coisa agora é diferente e o apoio que a população do Rio vem dando à ação das polícias é uma evidência marcante disso, né. A Mariana falou no ponto chave da história toda, a necessidade de o Estado entrar pra valer nas comunidades mais pobres com educação e saúde; mas também, como ela, acredito que esse pode ser um turning point, um primeiro passo necessário para que, ciente de seus fracassos e omissóes imperdoáveis, o Estado finalmente volte seus olhos para a periferia. Hoje as notícias do jornal (vi, finalmente) deram conta de prisão de parentes de traficantes, sequestro de bens, apreensão de dinheiro, enfim, desestruturação do capital do tráfico. Três advogados tiveram prisão decretada, etc etc etc. A tensão é muito grande diante da provável invasão do Alemão, já que os bandidos não se renderam, mas se eu pudesse seguraria na sua mão para dizer que tudo há de dar certo. Torcendo demais aqui. Muito, muito mesmo. Beijinho
Rita

Lílis disse...

Ola, Amanda!
Primeira vez que comento no seu blog, sempre leio.

Tambem sou carioca e estou morando na França. Essa situaçao toda me deixa muito preocupada. Eu tenho um amor imenso pela minha cidade, tambem sou da Tijuca, e antes de vir pra ca eu pude sentir o inicio das mudanças. De fato, o Rio me parecia mais seguro, mas a tal desconfiança carioca nunca me largou.

As fotos que vejo e noticias que leio parecem que foram tiradas de um filme. A midia brasileira, como sempre sensacionalista, trata o assunto como se houvesse somente dois lados: o do bem e o do mal, um épico narrado em tempo real, sendo que o assunto é muito mais complexo.

Enfim, é muito facil torcer pela vitoria do "bem" a qualquer custo quando nao se tem familiares/amigos no olho do furacao, independente de que "lado" estejam. Estou muito receosa com a situaçao e extremamente desconfiada mas a unica coisa que posso fazer é rezar e torcer para que de alguma forma tudo dê certo.

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